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"Nenhuma árvore vale uma vida "

02 out, 2013 • Matilde Torres Pereira

A rotina voltou, mas a memória continua atraiçoada. Oito bombeiros perderam a vida este Verão no combate aos incêndios. Centenas vivem a falta do companheiro, do amigo. Entre o medo, a razão e o vazio, a dúvida é comum: Porquê? Porque morreram no meio do mato? E não está a ser fácil: o sono já não corre como dantes. “Infelizmente, não há nenhum manual que nos prepare para a morte.”

"Nenhuma árvore vale uma vida "
De olhar fixo num qualquer ponto da parede do gabinete, Fernando Lucas diminui o volume da voz e o seu cerrado sotaque beirão torna-se mais difícil de compreender. “A recuperação faz-se com o próprio combate ao incêndio”, diz decidido o comandante dos bombeiros da Covilhã. O distrito é fustigado por incêndios ano após ano, mas, neste em particular, viveram o inédito de perder um companheiro. Pedro Rodrigues, de 40 anos, era já veterano no combate aos fogos. Morreu cercado pelas chamas na Coutada, num dia lembrado com uma placa de mármore negro erguida na entrada do quartel.

“Cada vez que conversamos ficamos emocionados. Ele trabalhava aqui todos os dias. Era uma pessoa extraordinária”, recorda o comandante. Fernando Lucas recebe as visitas no gabinete à porta fechada, como quem procura refúgio, mas não tarda em confessar que o caminho de regresso à normalidade não está a ser fácil: as noites mal dormidas tornam-se regra.

“Às vezes vou no carro para casa e penso, agora gostava de ser como os outros, chegar a casa e vestir os calções e estar despreocupado. Mas não é assim, esta noite por exemplo acordei três, quatro vezes. Continuamos a pensar no que terá causado a morte do nosso colega.”

A estrada que desce da Covilhã até Currelos, freguesia onde o que primeiro salta à vista são as paredes brancas e vermelhas do quartel de bombeiros, faz-se em estreitas estradas sinuosas que atravessam a Serra da Estrela. À medida que se sobe e desce a enseada, vai-se desenhando um cenário negro, de árvores ardidas, cinza e terra queimada.
“Infelizmente, não há nenhum manual que nos prepare para a morte”. Miguel Ângelo, comandante da corporação de Carregal do Sal, teve este ano de lidar com uma dupla perda: Cátia Pereira Dias, de 21 anos, e Bernardo Cardoso, de 19, ambos falecidos no combate às chamas no grande incêndio da Serra do Caramulo, que, com dois reacendimentos pelo meio, lavrou durante duas semanas no final de Agosto.

Numa mesinha à entrada do quartel, o jornal regional homenageia as vítimas dos fogos, e cartazes anunciam concertos e iniciativas de solidariedade para ajudar as associações de bombeiros a ultrapassar este capítulo trágico. “A Cátia era uma pessoa muito determinada, muito curiosa, com sentido de justiça muito grande, com vontade de aprender”, lembra o comandante. O Bernardo recorda-o como “um desportista nato, um excelente estudante”. “Guardo dele o espírito irreverente de jovem, com vontade de servir o próximo. Estas boas memórias são as que vamos tentar manter vivas.” O comandante fala a custo, e nota-se a rouquidão na voz de quem relembra dias fatais.

Mais a norte, nos corredores do quartel de Valença, um bombeiro lê um outro jornal com a capa coberta por fotografias de figuras fardadas. Foi nesta terra minhota que o veterano Fernando Reis, de 50 anos, morreu. Tinha ficado gravemente ferido, em Sanfins, depois ter sido atingido por uma língua de fogo quando conduzia do meio das chamas.

“Essas perdas são irrecuperáveis”, diz, resignado, Marco Domingues, adjunto de comando dos bombeiros de Valença. “Vamos tentando superar lentamente, mantendo-nos ocupados, mantendo o espírito de corpo, tentando a todo o custo levantar a cabeça.”

Para Luís Palha Nunes, comandante dos bombeiros de Alcabideche, o que está em causa é simples. “Precisamos do verde para respirar, é fundamental para o nosso bem-estar, temos de respeitar a Natureza, preservá-la, e muitas vezes dar a vida por ela. Agora, eu não tenho ninguém que valha um eucalipto, nem cem eucaliptos”, sublinha.

Dos poucos a revelar o lado mais pessoal, conta que tem seis filhos, que sabe precisarem de respirar do oxigénio da floresta.

“Nós arriscamos muito, pagamos um preço demasiado elevado, mas nenhuma árvore vale uma vida.” Em Alcabideche morreu Ana Rita  Pereira, de 24 anos.
Covilhã, Carregal do Sal, Valença, Estoril, Alcabideche e Miranda do Douro. Foi um ano de aprendizagem à força para todas corporações que perderam homens.

O árduo caminho da recuperação 
Valença tem um quartel humilde, com poucos meios, mas com uma jóia no parque de estacionamento: um reluzente carro vermelho dos anos 50, completo com cromados e estofos em pele. Em breve vai mudar de casa para o museu municipal.

O carro “vintage” é a única peça de museu deste quartel. Nas escadas do comando central, um grupo de cinco jovens bombeiros fuma cigarros enquanto esperam um de dois sinais: ou a sirene para entrar em acção, ou a sineta do almoço.

Para Filipe Moreira, bombeiro voluntário na corporação há vários anos, a recuperação é feita racionalizando. “Eu tenho uma filosofia diferente. Encaro a morte do meu colega como a morte de outro profissional noutro ramo qualquer. Todos os dias morre gente a praticar a sua profissão. A única diferença é que se está a fazer isto para ajudar alguém que não conhecemos. Por gosto à camisola.”

De voz ainda imberbe mas de personalidade aparentemente empedernida, assegura que não ganhou receio aos fogos. “Não podemos ter medo. O medo pode-nos fazer ficar lá.”
Já o comandante Marco Domingues tem críticas a apontar às autoridades. “Custa-me muito entender como é que um veículo cedido e concebido pela Autoridade Nacional da Protecção Civil é tao inflamável, sabendo que está sujeito a inúmeras projecções de matéria incandescente. Não é suposto.”

“O Fernando certamente não tinha tido os ferimentos que teve, não tinha morrido, se não fosse esse facto.” A dúvida permanece.

Só no próprio fogo se purgam os fantasmas. “De início vi-os bastante abalados, mas vejo-os mais fortes agora. Estão com um espírito de luta”, conta Ulisses Firmino. O problema maior, na opinião do presidente da corporação de Miranda do Douro, é o abandono da floresta, o que na zona de Trás-Os-Montes é notório.

Neste terreno mirandês, junto à fronteira com Espanha, o luto pesa sobre toda a população. Foram cinco operacionais envolvidos num acidente em Cicouro, surpreendidos por uma mudança brusca do vento que os encurralou no meio do fogo. Dois não sobreviveram: António Nuno Ferreira, de 45 anos, e Daniel Falcão, de 25, que ainda resistiu mais de um mês no hospital.

“Claro que nestas localidades somos praticamente uma família. Foi muito sentido”, descreve Ulisses Firmino, presidente da corporação. Pede para conversar de óculos escuros, desculpando-se com a claridade do dia, que na verdade já está a acabar. “É duro. Notou-se uma onda de consternação que quem conhece os meios pequenos sabe como é”, diz o presidente.

Cada um lida com a dor de maneira diferente. Para o comandante Luís Martins, “é um ano para esquecer”, afirma, preferindo ficar em pé, junto aos carros florestais estacionados no quartel, enquanto os olhos vão registando o movimento na estrada, na senhora das limpezas, em quem entra e sai da garagem. “Ainda hoje, em qualquer esquina que viramos, lembramo-nos deles.”

O bombeiro hoje está “fardado” à civil, talvez para ficar mais à vontade. “Ao Daniel chamávamos-lhe o pronto-socorro. O carro onde tiveram o incêndio, foi ele que lhe fez uma revisão geral, pintou-o… quis o destino que fosse com essa viatura que ele lá ficasse. O António Nuno era aquela pessoa que estava sempre alegre. Tinha sempre uma resposta que desarmava”, diz o comandante. “Deixam um vazio muito grande.”

“A morte está sempre à nossa beira”
Assegura que cada passo que dá na carreira serve para quebrar um estereótipo. Sónia Almeida faz parte do número ainda pequeno de mulheres que compõem os corpos de bombeiros. É chefe de equipa, e liderou a viatura em que seguia outra mulher: Ana Rita Pereira, de 24 anos. “Ainda estou a recuperar. É indescritível… Quebra-se um bocadinho a nossa autoconfiança.”

Ana Rita, bombeira do corpo de Alcabideche, foi outra vítima do fogo na Serra do Caramulo. “Ela cresceu aqui entre nós. Era uma referência em termos de postura. Tinha uma alcunha: a “Popota”. Era extremamente bem-disposta, levantava o astral a qualquer elemento”, lembra o comandante Luís Palha Nunes, que fala num corpo de bombeiros a recuperar lentamente, mas mais unido que nunca.

O comandante, um homem alto e forte, de olhos claros e amistáveis, diz que na sua corporação “as pessoas sentiram com humildade que são afinal muito vulneráveis”.
Como um padrão que se vai desenhando, percebe-se que estes bombeiros, pessoas de coragem, habituados à adrenalina, não estavam sequer a contar com a hipótese de poderem falhar.

A quarta vítima do incêndio no Caramulo foi Bernardo Figueiredo, de 23 anos, elemento do corpo de bombeiros do Estoril, plantado entre ruas de moradias sofisticadas e a metros do mar Atlântico que bate do outro lado da Avenida Marginal. “Este Verão para nós, com o falecimento do Bernardo, veio deixar marcas profundas”, diz o comandante Carlos Coelho, um dos mais jovens comandantes do país, ainda visivelmente abalado pelo acidente.

“Foi um dano importante neste corpo de bombeiros. O Bernardo era uma pessoa extremamente afável e inteligente. Leva-nos a questionar as consequências da nossa missão…realmente a morte está sempre à nossa beira.” 

Mas a atitude de um bombeiro é estar sempre pronto a servir e a reacção foi idêntica à de outras corporações. “No dia do funeral fomos accionados para um incêndio. Mais de 40 pessoas se predispuseram a ir de imediato”, conta Carlos Coelho. “Isto revela a nossa atitude.”

Os bombeiros são uma família, e como tal, sentem as mágoas como irmãos. “Lidarmos com isto com força, união, uma grande determinação em continuarmos a nossa actividade, o que fizemos 24 horas após o acidente”, afirma o comandante Miguel Ângelo. “A resposta que tive foi unânime: quiseram voltar ao serviço o mais rápido possível.”

Mais que uma placa ou uma menção no jornal, os bombeiros sentem que é no combate que se presta a justa homenagem. “Se calhar será esta a forma mais expressiva de honrar os camaradas. O nosso lema é ‘vida por vida’. Neste caso concreto, estes demonstraram o que é o grande sentimento de bombeiro, porque deram a vida.”

“Ser bombeiro é dar a vida”
É o lema dos bombeiros: “vida por vida”. Este ano deram oito. Numa profissão de desgaste rápido, muita exigência e pouca compensação, o que leva alguém a querer ser bombeiro?

“O que explica tudo é a nossa paixão por ser bombeiro. O prazer que nos dá podermos fazer bem o salvamento de uma vítima, trabalhar bem num acidente, apagar um incêndio - é a mesma coisa que um futebolista marcar um golo, é igual quando conseguimos ganhar à fera”, descreve, a sorrir, Pedro Marques, enquanto o olha timidamente a colega mais nova que vai ouvindo a conversa.

Sério, sempre sério, “é preciso ser-se solidário”, defende o comandante Miguel Ângelo. “Na nossa sociedade esta enraizada uma grande crise de valores, e nos bombeiros tentamos incuti-los aos nossos homens. Quando um jovem se predispõe a ser voluntário, a ajudar o próximo sem pedir nada, é a prova evidente de que os bombeiros de Portugal têm um papel e uma dimensão que infelizmente não é reconhecida.”

Essa aparente capa de invisibilidade que esconde os bombeiros foi levantada, nalguma medida, durante este Verão. E eles são os primeiros a reconhecê-lo. “Quando saio à rua, muitas vezes sou abordado por pessoas anónimas que me vêm agradecer, e nós até ficamos um bocado sem jeito, estar ali a receber elogios. Já saí para fora e vi as pessoas a baterem-nos palmas quando passamos”, narra, emocionado, o segundo comandante de Alcabideche. Ainda outra forma de estar: José Costa está impecavelmente fardado, pronto a correr quando for preciso.

Elevados por instantes ao estatuto de heróis, dá-se um fenómeno há muito perdido: cativam os mais novos ao alistamento. “Houve uma abordagem muito diferente por parte da população, de carinho, de reconhecimento, de compreensão, e de partilha também da dor, e já tivemos cerca de sete inscrições para voluntários, o que já não acontecia há alguns anos”, confessa Carlos Coelho.

“Ser bombeiro é dar a vida. Um bombeiro dá 100 horas por mês ao corpo. Grande parte tem outras profissões, e vêm aqui nas suas folgas, nas suas noites, ajudar o próximo a troco de nada”, acrescenta o comandante. “Temos que os estimar.”

Para que as estas vidas não tenham sido em vão, cada bombeiro, embora habituado e preparado a trabalhar longe dos olhares da maior parte das pessoas, deixa votos de que não seja esquecido. A centenas de quilómetros da capital, na pequena vila mirandesa onde lidera o comando, Luís Martins espera isso mesmo: que Outubro não traga a habitual falta de memória.