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Conversas Cruzadas

Ex-economista do FMI não se lembra de um resgate tão bem conseguido

18 mai, 2014 • José Bastos

Álvaro Santos Almeida diz que “a ‘troika’ tratou o que queria tratar”, mas há “reformas que não se fizeram”. Daniel Bessa reconhece “estragos”, mas detecta virtualidades no cenário actual. “Em 2011 sentia-me num avião a caminho do desastre”.

Ex-economista do FMI não se lembra de um resgate tão bem conseguido
“Não recordo um programa de ajustamento aplicado num país desenvolvido – e democrata – que tenha tido um efeito final tão próximo do esperado como este programa em Portugal”, afirma o economista Álvaro Santos Almeida no programa “Conversas Cruzadas” deste domingo, onde se olhou para o fim formal do resgate.

O ex-quadro do Fundo Monetário Internacional (FMI) em Washington defende a eficácia da intervenção externa. “Não nos esqueçamos que um programa de ajustamento é, em primeiro lugar, um programa de resolução de um problema de financiamento”, sublinha.

“Esse problema está resolvido, porque o défice externo desapareceu. Era a causa última do endividamento. Está resolvido, porque as condições de financiamento são hoje perfeitamente razoáveis. O célebre ‘acesso aos mercados’ significa que é possível financiar-se a condições aceitáveis”, acrescenta, concluindo que “aquilo que o programa de ajustamento económico-financeiro queria tratar tratou!”

Mas “foi um programa perfeito?”, questionou. “Não, porque houve coisas que não se fizeram e deviam ter sido feitas”, nota Álvaro Santos Almeida, professor na Universidade do Porto.

Também reconhecedor de méritos domésticos na conclusão do programa é o ex-ministro da Economia Daniel Bessa. “É irrecusável reconhecer que foi feito um trabalho interno. Na frente das contas com o exterior. Em matéria de contas públicas. Claro que muitas coisas não foram feitas como gostaríamos. Há muitas áreas de reformas que não foram cumpridas. Mas, globalmente, temos de reconhecer que houve trabalho”, considera.

“Agora, do ponto de vista dos indicadores económicos isto ter efeitos no bolso das pessoas? Isso...só mais tarde. Tem uma sequência. Mas há aqui coisas que mudaram para melhor. Temos de estar contentes. Moderadamente contentes”, acrescenta.

E quanto à suavização dos “estragos sociais” deixados pelo programa? “Mesmo que não surja uma rápida recuperação, sabemos hoje que, quando o programa começou, estávamos a dias do Estado não ter como fazer pagamentos”, lembra Álvaro Santos Almeida.

“Não foi numa situação em que estava tudo bem. Essa é a questão. Não podemos pensar que em 2011 estava tudo normal e, depois, veio a ‘troika’ e obrigou a fazer estas maldades todas. Não estava. A situação estava a resvalar para o abismo e o que a ‘troika’ fez foi impedir a queda no abismo”, indica.

Daniel Bessa: “Sentia-me num avião com a morte à frente!”
O aumento substancial de impostos, a perda de rendimentos e de empregos não foram, entre outros, custos elevados a pagar pelo conjunto da sociedade?

“Hoje sabemos os estragos, mas eu dantes sentia-me metido num avião pilotado por alguém a caminho de uma parede qualquer. Até podia continuar ali sentado, mas a morte estava à minha frente. Como é que eu podia estar satisfeito metido num avião a caminho de um desastre?”, pergunta o ex-ministro da Economia Daniel Bessa.

“Agora não me sinto assim. Ganho, talvez, metade do que ganhava. Ou menos. Ainda bem que há níveis de rendimento que foram poupados a estragos destes. Ainda bem. Queixo-me com alguma razão, mas sou um privilegiado. Tenho um nível de remuneração que permitiu acomodar estas perdas”, reconhece.

“Felizmente, o salário mínimo não foi mexido. Milhão e meio – ou um pouco de mais – de pensionistas não foram tocados. Há estragos, claro, e os meus foram grandes. Mas sinto-me melhor assim que metido num processo a ir acabar em catástrofe”, acrescenta o director-geral da Cotec Portugal.

Álvaro Santos Almeida: “2014 não se compara a 2011”
Álvaro Santos Almeida argumenta pela impossibilidade de comparações com o passado. “O doente curou o cancro, mas era uma pessoa idosa, estava fraco e vai agora queixar-se do médico porque não se sente com a energia que tinha aos 20 anos?” é o exercício metafórico escolhido.

“A questão é esta. Não podemos comparar a situação antes do programa com a situação pós-programa. O que o programa de ajustamento fez não foi pegar numa situação estabilizada e alterá-la. A situação não estava estabilizada. Se não houvesse programa estaríamos hoje muito pior do que estamos. Disso as pessoas não se apercebem, porque não sabem como estariam sem programa”, afirma o economista.

Mas por que razão a percepção de boa parte da sociedade não parece coincidir com a visão de sucesso na conclusão do ajustamento?

“Passei boa parte da minha vida em salas de aula da faculdade a discutir com os alunos os períodos de expansão, crise e recuperação económica”, lembra Daniel Bessa.

“Num período de recuperação – é disso que falamos – há uma ordem. As coisas seguem essa ordem. As últimas variáveis a subir são emprego e salários. Primeiro subirá o emprego. Com os níveis de desemprego actuais nem sequer é recomendável que haja aumentos salariais. Nem é recomendável, nem há condições”, sustenta.

“Normalmente, a primeira coisa a recuperar são as acções em Bolsa. O indicador das acções é dos primeiros a subir, muito na base não do que se passa, mas do que se espera. Um indicador de confiança”, observa, admitindo que “a 99% das pessoas nas suas casas – e também aos empresários – isto não lhes dirá muito”.

programa “Conversas Cruzadas” é emitido na Renascença aos domingos, entre as 12h e as 13h00.