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Uma parceria entre a Renascença e o jornal “Público”. Entrevistas aos protagonistas da atualidade. Quinta às 23h20.
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Autarcas recusam termo de responsabilidade para acelerar fundos europeus para habitação. "Não vamos assumir, obviamente"

16 mai, 2024 • Susana Madureira Martins (Renascença) e Helena Pereira (Público)


A presidente da Associação Nacional de Municípios desafia o primeiro-ministro a aconselhar-se com ministro Adjunto e da Coesão sobre regionalização. “Pode ser que no Governo haja o bom senso de alinhar” com os autarcas, diz Luísa Salgueiro.

Hora da Verdade com Luísa Salgueiro
Veja a entrevista completa de Luísa Salgueiro ao Hora da Verdade. Foto: Rui Gaudêncio/Público

A presidente da Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP), Luísa Salgueiro, avisa o Governo que os autarcas recusam responsabilidade em acelerar as empreitadas para cumprir as metas do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) na habitação.

A proposta do Governo, que permite aliviar o Instituto da Habilitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) da missão de avaliar e dar luz verde às candidaturas, é contestada pelos municípios.

Em entrevista ao programa Hora da Verdade, da Renascença e do jornal Público, que pode ouvir esta quinta-feira a partir das 23 horas, Luísa Salgueiro diz que pretende recandidatar-se para um novo mandato à presidência da Câmara Municipal de Matosinhos nas eleições autárquicas de 2025.

Sobre as europeias de 9 de junho, a presidente da ANMP confessa que hoje já acredita que vão correr bem, mas que mantém o “receio da cobertura de rede internet em alguns locais”. Luísa Salgueiro diz que vão ser criadas linhas “especificamente” para estas eleições e há “alguns locais” em que a cobertura “é mais difícil”.

A autarca de Matosinhos diz-se ainda contra a extinção da Agência para a Integração Migrações e Asilo (AIMA) e considera que “o que importa é dar-lhe condições para que funcione”.

Nas últimas semanas, tivemos conhecimento de casos de agressões a imigrantes do Senegal no Porto e a uma criança nepalesa em Lisboa. O que é que acha que está a acontecer? São casos isolados? Como é que as câmaras municipais podem responder a estas situações?

Desejo que sejam fenómenos isolados, mas as câmaras municipais podem ter aqui um papel porque são a primeira porta de entrada e de resposta a estas pessoas. Temos muitas competências na ação social, em centros locais de apoio à população migrante. É importante que exista uma melhor articulação entre estes centros, entre as respostas dadas pelos municípios e a AIMA, para que as pessoas não aguardem tanto tempo. Muitas das respostas poderiam, até se assim for entendido, ser agilizadas pelos municípios, o que agora não acontece.

A ministra da Administração Interna, em resposta a esta situação da criança nepalesa, garantia que ia haver mais policiamento junto das escolas. Essa é uma boa resposta?

Existe há muito tempo o programa da Escola Segura. Mas não me parece que se responda a isto com mais repressão. É mais importante a formação e a sensibilização das crianças, dos jovens que estão nas escolas, para compreenderem o respeito que devemos ter pelos outros e a diferença pela multiplicidade.

Precisamos que as pessoas sejam bem integradas, que sejam tratadas com dignidade, que haja regras na entrada de pessoas das mais variadas proveniências e, sobretudo, eliminar as causas que fomentam este discurso racista e xenófobo que depois gera situações que eu espero que sejam pontuais, como aquelas que observamos nos últimos dias.

A AIMA foi um erro, ou a extinção do SEF poderia ter sido feita de outra maneira?

A AIMA foi uma instituição criada muito recentemente. Não acompanho as vozes que propõem a extinção da AIMA. O que importa é dar-lhe condições para que funcione.

Temos de avaliar o que está a falhar na AIMA. A escassez de recursos é evidente. As solicitações e a demanda destes serviços cresceram muito e o importante é reforçar a capacidade de resposta da AIMA.

No pacote da habitação, aprovado na semana passada pelo Governo, as câmaras vão ter um papel mais central. Ficou satisfeita com estas novas regras?

É uma tentativa de aperfeiçoamento do Mais Habitação. Para nós é importante, porque estamos confrontados neste momento com a fase decisiva de concretização das estratégias locais de habitação. Nós temos dificuldade em executar os recursos que temos disponíveis, que vêm sobretudo do financiamento do PRR, mas que requerem aprovações por parte do IHRU. O IHRU não tem capacidade de resposta, tem sido um constrangimento.

Vem agora essa proposta, ainda não sabemos como vai ser materializada. Todas estas intenções que foram anunciadas na semana passada precisam de ser valorizadas. Vão ser convertidas em documentos, em textos legislativos, portanto, nós aguardamos para dar parecer e ver como se vão materializar estas medidas.

É proposto que haja a possibilidade de ser assinado um termo de responsabilidade por parte dos municípios, que dispensa a aprovação por parte do IHRU. Mas nós não sabemos como vai ser concretizado, os autarcas não vão poder assumir, pessoalmente, estas responsabilidades. De que forma é que o Tribunal de Contas olha para esta medida? Se houver falhas, nós vamos assumir a responsabilidade para iniciar uma empreitada, para dispensar a aprovação do IHRU, e se depois houver falhas no processo, quem assume essa responsabilidade? Seguramente não podem ser os presidentes de câmara a fazê-lo.

Acha que não é exequível? É uma boa intenção, mas não é exequível?

Não sei, pode ser exequível, depende da forma como seja materializada. Não sei se será uma responsabilidade do município. Dos eleitos não pode ser, nós não vamos assumir essa responsabilidade, obviamente.

Já tivemos ocasião de reunir com o ministro Castro Almeida sobre este assunto, transmitimos esta nossa posição. Agora aguardamos pela materialização destas medidas, de que forma é que elas se vão verter nos diplomas legislativos necessários.

E também há preocupação em torno do trabalho do IHRU...

O IHRU foi assoberbado de trabalho, não estava preparado, não havia estrutura tão forte quanto necessária, para fazer face ao enorme volume de pedidos. Ficou bloqueado. Assim não vai ser possível executar as verbas do Plano de Recuperação e Resiliência que ainda estão disponíveis, nem vai ser possível disponibilizar o número de fogos que está previsto.

Preferia que fosse o IHRU a conseguir dar resposta em vez de se assumirem termos de responsabilidade?

É um modelo que está previsto desde sempre. Isto é uma solução de recurso de última hora, recurso que não pode trazer responsabilidade sobre os eleitos locais. Não se pode resolver um problema criando um novo problema. Se não houver responsabilidade da nossa parte, nós podemos acompanhar esta mudança. Temos, portanto, que aguardar os termos do processo do modelo legislativo que vai ser apresentado.

Mas há outras medidas de habitação. Por exemplo, as autarquias voltam a ter autonomia nas licenças do alojamento local.

As autarquias nunca deixaram de ter autonomia nas licenças. O Governo anterior disse que, havendo identificação de muita pressão do turismo sobre a habitação, ficavam suspensas as atribuições de novas licenças de alojamento local, ficando dependentes das cartas municipais de habitação.

Quando ouço dizer que as câmaras não tinham possibilidade de autorizar e que passam a ter, isso não corresponde à verdade. As câmaras tinham de aprovar as cartas municipais de habitação, definir a sua estratégia em termos da pressão urbanística.

Mas agora fica mais simples, não é?

Nós estamos a preparar as cartas municipais de habitação, e faz sentido que dentro do próprio território se distinga porque o município tem zonas de pressões distintas e há locais onde até faz sentido haver alojamento local para estimular a atração de pessoas e outros no mesmo município em que isso não faz sentido.

Claro que agora passa a ser mais automático e obviamente vamos continuar a correr o risco de haver mais alojamento local e menos habitação disponível nos locais de maior pressão turística.

Outra das medidas foi dar a possibilidade às câmaras de identificar imóveis do Estado e poderem propor a sua utilização.

Essa não é uma novidade porque os imóveis do Estado já tinham sido alvo de transferência de competências para os municípios, ao abrigo da Lei-Quadro da Transferência. Nós temos normalmente de articular com a ESTAMO, que é a entidade que gere o parque público de imóveis e que não é rápida nesta operação.

Portanto, é uma intenção, mais uma vez...

É mais um anúncio. É uma vontade, é uma medida que vai no sentido certo, deixar de haver imóveis que estão devolutos e sem utilização há décadas. Mas é preciso percebermos de que forma é que ela vai ser materializada. Caso contrário, continuamos a arrastar durante longos anos estes processos de negociação e não se opera a transferência.

Acha que pode ser uma mão cheia de nada este pacote de anúncios?

Não quero dizer isso à partida. É uma medida, no sentido certo, de acelerar tudo o que for possível para que o país cumpra os seus objetivos, quer em termos de execução financeira do PRR, quer em termos de disponibilização de fogos.

A descentralização de competências não foi concluída na área da saúde. Quantas câmaras ainda não assinaram os autos?

Menos de uma dezena, segundo sei. A transferência de áreas mais complexa foi a da educação. A da ação social anunciava-se como difícil, mas correu de uma forma muito tranquila.

No caso da saúde, houve uma garantia que não aconteceu nas outras áreas. É que cada município só assumiu as competências quando assinou o auto de transferência e verificou se as condições no seu município eram compatíveis com os seus recursos.

Durante a governação de António Costa, foi-se tão longe quanto se poderia ter ido na descentralização?

A governação de António Costa foi interrompida subitamente e o processo estava numa fase decisiva.

O atual primeiro-ministro afastou o referendo à regionalização que está previsto na Constituição. Qual é a posição da Associação Nacional de Municípios?

É clara. No congresso em que fui eleita, quer o primeiro-ministro, quer o Presidente da República consideraram que o ano 2024 seria o ano acertado para se realizar o novo referendo sobre a regionalização. Havia um alinhamento entre os dois maiores partidos.

No primeiro momento do mandato enquanto líder do PSD, Luís Montenegro anunciou que com este PSD que não haverá regionalização. Agora que está no Governo, parece-me ainda mais difícil que ela aconteça. Portanto, o país vai continuar a ver este processo adiado, que é prejudicial do ponto de vista da Associação Nacional de Municípios.

Mas vão continuar com a pressão?

Vamos continuar.

Há muitos autarcas do PSD que concordam com a regionalização.

E há até autarcas que no anterior referendo tomaram uma posição contra a regionalização e que, entretanto, já reviram a sua posição e concordam. Também há autarcas que continuam a não defender a regionalização. São minoritários, portanto, era importante ouvir a população sobre esta vontade.

Desde que é primeiro-ministro, não ouvimos Montenegro falar disso.

É uma boa pergunta para se colocar ao primeiro-ministro, se ele já reviu a posição e se já ouviu, designadamente, o ministro da Coesão [Castro Almeida].

O ministro tem abertura para um referendo?

Creio que sim. O ministro da Coesão, para além de ser ex-presidente da câmara [de São João da Madeira], tem uma visão relativamente à regionalização diferente do primeiro-ministro. Pode ser que no Governo haja o bom senso de alinhar com a opinião da Associação Nacional de Municípios.

Fica satisfeita que Pedro Nuno Santos vá ao encontro daquilo que defendeu há uns meses? O líder do PS admitiu aprovar o Orçamento do Estado numa entrevista recente à SIC.

Quando fui questionada sobre a atitude que o Partido Socialista deveria ter, a minha opinião foi a de que deve haver uma perspetiva de diálogo que, naturalmente, tem de ser liderada pelo Governo. O Governo está assente num apoio parlamentar com a mesma expressão do PS. Portanto, ao governar tem de ter a consciência que não pode fazer isoladamente sem acolher a perspetiva do PS. Disse que fazia sentido conversar e garantir que algumas das medidas que o PS aprovou, a bem do país, possam ser vertidas no Orçamento do Estado. E vejo que, recentemente, o secretário-geral do meu partido, que eu apoiei, tem a mesma opinião. É o natural.

Sentiu-se mais confortada?

Não é confortada, não procuro conforto, mas revi-me mais nestas palavras.

E quais é que seriam as consequências de não haver um Orçamento do Estado para as autarquias? Acha viável viver em duodécimos ou o caminho teria de ser a dissolução, por exemplo, do Parlamento?

A gestão em duodécimos é desaconselhável. Nós temos muitas medidas em preparação. É preciso rever designadamente as posições remuneratórias da função pública. Temos investimentos dependentes do Orçamento do Estado. Mas não me parece, sobretudo para o país, que fosse conveniente haver uma dissolução da Assembleia da República, a escasso tempo de vigência deste Governo. O país não deve assistir a um novo processo eleitoral em breve. E, portanto, se tivermos de governar em duodécimos, será desaconselhável, mas é um dos cenários possíveis.

Em relação ao novo aeroporto de Lisboa, já há uma decisão tomada esta semana. Alcochete foi a escolha. É a melhor decisão?

É a decisão da Comissão Técnica, que já tinha sido proposta várias vezes. Portanto, está na altura de o país avançar. Se é essa a decisão certa, o que importa é não esperarmos mais e garantirmos que o investimento avança e que o país vai ter um novo aeroporto para servir, a partir da capital, todo o território.

Acha que vai haver contestação por parte de algum município nesta localização?

É natural que haja. Já houve várias propostas. Há municípios que se vão sentir preteridos, mas há um interesse nacional a acautelar e aquilo que for melhor para o conjunto dos municípios deve ser a proposta a validar.

É normal que o Governo não adiante custos sobre esta obra?

Tem de adiantar. Foi escolhida a localização preferida. No momento seguinte tem de se fazer os cálculos e as condições em que o investimento vai ser feito.

Mas esses cálculos já deviam ter sido feitos para serem apresentados pelo ministro?

Estimo que alguns estejam feitos. O primeiro-ministro quis marcar a agenda política. Quis fazer este anúncio rapidamente. Espero que a seguir faça essa apresentação.

Como viu o afastamento de Ana Jorge da Santa Casa?

Como uma decisão precipitada por parte do Governo. Ana Jorge estava a avaliar e a corrigir o que precisava ser feito. É uma atitude, é um estilo. Não aconteceu só na Santa Casa.

Acha que o Governo tem estado a fazer saneamentos políticos?

Tem estado a tomar decisões precipitadas, focadas em pessoas, quando o mais importante são os dossiers que as pessoas têm de tratar e o impacto que eles têm na vida das pessoas. Não é apenas afastando ou mudando os rostos que nós vamos resolver nem os problemas da Santa Casa, nem da PSP. É preciso olhar os problemas com mais profundidade e não apenas fazer a mudança de cadeiras.

Temos eleições europeias a 9 de junho. Há ou não atrasos na preparação destas eleições por parte dos municípios?

Os municípios têm a responsabilidade habitual de preparar os locais de votos, as assembleias, organizar os membros das mesas. Este ano há uma diferença, porque pela primeira vez os cadernos eleitorais vão ser desmaterializados e é necessário ter uma pessoa com conhecimentos informáticos em cada mesa de voto. Esse número estava muito aquém das necessidades, mas esse processo está praticamente sanado.

Acredita que vai correr bem?

Hoje já acredito. Tenho só o receio da cobertura de rede internet em alguns locais. Vão ser linhas criadas especificamente para este ato e há alguns locais em que a cobertura é mais difícil.

Vai ser de novo candidata à Câmara de Matosinhos?

Tenho essa vontade.

E espera que seja Pedro Nuno Santos o líder do Partido Socialista na altura das autárquicas em 2025?

Espero que sim. Não convém ao Partido Socialista mudar de liderança.

Imaginemos que o PS viabiliza o próximo Orçamento de Estado. Pode haver uma fratura no PS?

Não. Essa decisão terá sempre de ter pressupostos razoáveis, escrutináveis, demonstráveis. Portanto, acho que o Partido Socialista, se optar por uma decisão dessas, se manterá unido em torno dessa decisão que o secretário-geral, a direção e os órgãos nacionais entendam.

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