República Portuguesa

O Governo e os seus logótipos. “Pela primeira vez”, o design é “tema de abertura"

08 abr, 2024 - 15:18 • Salomé Esteves

De um lado, há aplausos a Montenegro por trazer de volta a esfera armilar e o escudo à identidade visual do Governo. Do outro, quem reclame a valorização da profissão de designer. Não são ainda claros os custos da repescagem da anterior imagem. A Renascença recupera outros marcos fundamentais na história da relação do design com as instituições públicas.

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“O que é extraordinário é que o design é, talvez pela primeira vez aqui no nosso país, tema de abertura”, diz, com entusiasmo, José Brandão, professor emérito da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa. Designer há mais de sessenta anos e autor do antigo logótipo do Ministério da Educação, é um de muitos profissionais da área que questionam a decisão de Luís Montenegro de revogar a anterior identidade visual da República Portuguesa.

A decisão gerou polémica, sobretudo nas redes sociais, entre os designers portugueses. Para muitos, a reversão da identidade encomendada por António Costa ao designer Eduardo Aires (a quem se juntou o tipógrafo Dino dos Santos) mostra uma desvalorização da profissão. A indignação levou, até, à criação de uma petição pública que conta com mais de 12 mil assinaturas.

Mas há razões para tamanha discussão em torno de uma imagem gráfica? Sim, defende José Brandão, porque “a argumentação” de Luís Montenegro “é catastrófica” e recorre a “coisas históricas evocativas, sobretudo, com uma carga quase nacionalista”.

Apesar disso, o designer não tem a “certeza absoluta” de que Eduardo Aires, autor da anterior imagem gráfica, tenha sido “completamente bem-sucedido". O antigo professor de design avança uma avaliação mais detalhada: “o elemento identificador perdeu-se na geometria”, reflete, "perdeu-se, de facto, uma evocação de qualquer coisa que fosse um bocadinho mais portuguesa e que não fosse generalizável”.

Também para Artur Filipe dos Santos, professor universitário nas áreas de Comunicação e Protocolo, o que faltava era claro: o escudo de Portugal, “que é o símbolo maior dentro da bandeira nacional”.

O especialista em vexilologia (estudo das bandeiras, estandartes e insígnias) explica que o verdadeiro “símbolo de um país é realmente a sua bandeira” e não o logótipo que o Governo utiliza nas suas práticas institucionais. Ainda assim, acrescenta que “faz todo o sentido que o logótipo que é utilizado pelo Estado português, pelo Governo, pela Presidência da República e pelos corpos diplomáticos portugueses faça menção à história e à simbologia” do país.

As discussões em torno da identidade visual da República Portuguesa polarizaram argumentos sobre simbologia, nacionalismos e a pureza das representações gráficas.

Para José Brandão, nada disto é mau sinal: “as pessoas talvez tenham passado a compreender que uma imagem não é desprovida... não é um boneco, é uma coisa que tem conteúdos e que é susceptível de ter interpretações.”

Um dos grandes argumentos de quem aprova o retorno da esfera armilar e do escudo à identidade do Governo é a ultra simplicidade das formas. Multiplicam-se no X (antigo Twitter), no Instagram e no LinkedIn as insinuações de que o símbolo projetado por Eduardo Aires se “fazia em 10 minutos no Paint”. Em entrevista ao Expresso, o designer admite que esses comentários são “elogiosos”, porque significam que a solução “tem uma pregnância visual elevada” e “um funcionamento eficaz”.

Além da comunidade de designers portugueses e outros profissionais de comunicação, também marcas se juntaram no apoio à identidade visual abandonada por Luís Montenegro. O Ikea, que já tem a tradição de utilizar a conjuntura portuguesa para produzir materiais de comunicação, foi o primeiro a reagir. Mas de imediato se seguiram outros: os rebuçados Dr. Bayard, a editora Penguin, os molhos Rufia, a Aquela Kombucha e até o restaurante Ajitama manifestaram apoio ao trabalho de Eduardo Aires e Dino dos Santos.

Eduardo Aires e Dinos dos Santos projetam para a República

Eduardo Aires está longe de ser um estreante no processo de reformulação de identidades visuais. O estúdio que dirige também foi responsável pelo desenvolvimento da nova identidade da cidade do Porto, em 2014, e do município de Mirandela, entre muitos outros projetos, como o Mercado do Bolhão e a Livraria Lello.

A marca “Porto Ponto” recebeu o prémio de melhor identidade visual (“Best of Show”) nos Prémios Europeus de Design de 2015.

Para a República Portuguesa, o designer encabeçou uma “alteração de fundo”, como se lê no manual de normas gráficas, focada na comunicação em “ambiente digital”. Ao mesmo tempo que se cria um símbolo “novo e distinto” a partir das formas centrais da bandeira nacional, Eduardo Aires nunca pretendeu que o design interferisse “com o estatuto, a dignidade e a representatividade da bandeira nacional”, continua o mesmo documento.

Mas o símbolo não é o único novo elemento nesta identidade visual desenhada de raíz.

Dino dos Santos, co-fundador da DS Type Foundy — que recebeu, entre outros prémios, o Certificado de Excelência em Design de Tipos —, criou o primeiro tipo de letra alguma vez desenhado exclusivamente para o Governo Português: a “Portuguesa”. A partir desse momento, o Estado tornou-se o único proprietário desta família tipográfica, deixando de ter de recorrer a tipografias abertas ou feitas para outros propósitos ou entidades.

“O facto de haver um tipo de letra proprietário significa que se saiba de antemão que aquele é um documento oficial do Estado”, esclarece o tipógrafo premiado numa entrevista publicada na conta de Instagram do Governo.

Além disso, a tipografia desenhada por Dino dos Santos pode ser usada em 250 línguas — o que não acontecia, por exemplo, com o tipo de letra adotado pela Brandia Central quando projetou a imagem gráfica do Governo de Portugal em 2011.

Apesar de terem desenvolvido o mais completo projeto de design para o Governo até à data e a discussão sobre design estar na ordem do dia, Eduardo Aires e de Dino dos Santos não foram os primeiros a projetar imagens para o Governo em democracia.

Os autores da imagem da República Portuguesa de 2023 seguiram as pegadas de figuras maiores do design português, como Ricardo Mealha, José Brandão e Paulo Falardo, que remontam aos anos 90 e ao tempo em que António Guterres era primeiro-ministro de Portugal.

Os Governo de Guterres e a identidade individual dos ministérios

Durante o Estado Novo, o design para as instituições públicas e governamentais estava ligado, primeiro, ao Secretariado da Propaganda Nacional (SPN), depois transformado em Secretariado Nacional de Informação e Turismo (SNI). Depois da revolução, vários designers começaram a desenvolver trabalho independente e a ganhar notoriedade entre as instituições públicas.

Até 1997, ano em que o então ministro da Cultura, Manuel Maria Carrilho, abriu um concurso público para o design do logótipo do Ministério da Cultura, a imagem gráfica do Governo era composta pela esfera armilar, o escudo e texto.

José Brandão explica que, nessa altura, salvo “raras exceções”, “a maior parte das coisas era resolvidas assim ad hoc”. Só com designers como Sebastião Rodrigues, “que era genial”, e Ricardo Mealha, “muito talentoso”, é que a relação entre as instituições públicas e os designers se estreitou.

Em 2000, no executivo encabeçado por António Guterres, vários ministérios adotaram uma identidade visual independente. A sua contratualização também ficou ao critério de cada um dos três ministérios que optaram por fazer a mudança: a Educação, a Justiça e a Saúde.

A Cultura tinha já adiantado caminho três anos antes. Manuel Maria Carrilho, então ministro da Cultura, abriu um concurso por convite para aquela que viria a ser a primeira identidade visual de um ministério. O então assessor do ministro, José Ribeiro da Fonte, convidou os designers José Brandão, Henrique Cayatte e Ricardo Mealha a apresentar as suas propostas. O trabalho acabou por ser entregue a Ricardo Mealha, na altura em nome do estúdio RMAC, que coordenava com Ana Cunha. Mealha foi autor de outras identidades visuais, como a do Palácio Nacional da Ajuda, a Companhia Nacional de Bailado e do Museu da Presidência da República.

O logótipo desenhado por Mealha, fortemente inspirada pelo do museu parisiense de Orsay, acabou por ser adaptado, em 2006, a pedido de Isabel Pires de Lima, então ministra da Cultura. O designer criou outros 12 logótipos para os variados serviços do ministério, como a Biblioteca, a Cinemateca e os Teatros Nacionais.

A imagem gráfica do ministério tornou-se obsoleta com a transformação da pasta em Secretaria de Estado. Esta alteração coincidiu com a adoção da identidade visual que o Governo de Luís Montenegro recuperou esta terça-feira e que uniformizava a identidade dos ministérios.

Na Educação, foi o então ministro, Guilherme de Oliveira Martins que contactou o estúdio B2 Design. A imagem gráfica do ministério foi projetada pelos designers José Brandão e Paulo Falardo e é totalmente baseada em elementos tipográficos, em tons de vermelho e verde.

O mesmo estúdio também foi responsável pelo desenvolvimento de outros logótipos institucionais, como o do Tribunal de Contas, dos CTT e dos teatros nacionais de São Carlos e D. Maria II, entre outros.

Na Justiça, a imagem gráfica foi adjudicada à Brand Image, de José Ferreira, Miguel Almeida e Jorge Medeiros. António Costa era ministro da Justiça quando a alteração do logótipo foi feita.

O logótipo do Ministério da Saúde também foi alterado no início do novo milénio, então sob a alçada de António Correia de Campos, mas o autor é desconhecido. Apesar de ter ficado obsoleto há cerca de 13 anos, o símbolo ainda pode ser visto à porta de vários estabelecimentos, incluindo centros de saúde, pelo país.

Do “Governo de Portugal” à “República Portuguesa”

Em 2011, o Governo de Passos Coelho criou a marca “Governo de Portugal”. Esta não foi apenas uma medida de reformulação da identidade gráfica, mas, de acordo com uma notícia do Diário de Notícias desse ano, uma “medida de eficiência” centrada num “processo de reorganização e racionalização”.

Além da criação de uma identidade visual única e, portanto, a eliminação das identidades visuais individuais que existiam em alguns ministérios até àquele momento, a estratégia de “rebranding” passava pelo desenvolvimento de um portal único onde convergissem todos os ministérios.

Ter uma identidade visual única para o Governo e todos os seus ministérios e serviços é uma estratégia comum, mas não transversal, em vários países da Europa e do mundo, como a Alemanha, França, Espanha, Reino Unido, entre outros.

José Brandão, que assinou o logótipo do Ministério da Educação em 2000, defende que uma identidade visual única ajuda a fomentar a noção de que existe “uma unidade nacional que nos superintende”. Esta ideia era partilhada pelo designer Ricardo Mealha que, numa entrevista de 2011 ao jornal Público, defendia “uma nova organização para a imagem do Estado Português”.

Na altura, a identidade gráfica foi desenvolvida pela equipa do designer Hélder Pombinho, na agência Brandia Central, que viria a entrar em estado de insolvência em 2018. Esta foi também a agência responsável pelas imagens gráficas dos Europeus de Futebol de 2012 e de 2016 e, mesmo antes de encerrar, do Mundial de Futebol de 2018.

Esta imagem gráfica unificada, que foi o primeiro trabalho de design português para o Governo em toda a sua dimensão, veio tornar obsoletos os logótipos desenvolvidos durante os governos de Guterres.

Na altura, o executivo de Passos Coelho garantia que não haveria “nenhum desperdício dos materiais atualmente existentes”, porque a aplicação da nova marca seria gradual.

O projeto teve um custo total de 25 mil euros, segundo o Público. Enquanto o logótipo em si custou cinco mil euros, os restantes 20 mil foram aplicados em custos de alteração de estruturas e “adaptação do material gráfico”.

Em 2016, já no tempo da "geringonça", António Costa decidiu abandonar a designação de “Governo de Portugal” e adotar “República Portuguesa”, logo na tomada de pose. Contudo, o executivo optou por não substituir a imagem da bandeira estilizada que acompanhava o texto.

Na verdade, é a esta versão da identidade visual que Luís Montenegro agora regressa, não voltando a adotar a designação de “Governo de Portugal”.

Ainda não é claro quanto a atual mudança irá custar aos bolsos do Estado. No portal base, o único custo associado à criação e desenvolvimento da identidade visual é o contrato feito ao Eduardo Aires Studio, no ano passado, no valor de 74 mil euros. Desde então, a Presidência do Conselho de Ministros não voltou a fazer um contrato na área de comunicação ou produção de materiais gráficos.

[Atualizado a 9 de abril às 9:43h com a informação sobre o concurso para a identidade visual do Ministério da Cultura]

Comentários
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  • Pedro Augusto
    10 abr, 2024 Lisboa 08:32
    Para as pessoas aqui abaixo, duas coisas: 1 - a quantidade de erros ortográficos no primeiro comentário e a basicidade do mesmo mostram bem a ignorância que grassa nesta sociedade, que se extravasa para esta matéria; 2 - no caso do segundo, até aceito o argumento da designação, mas não aceito a cegueira de não ver que os símbolos nacionais estão lá.
  • Maria
    09 abr, 2024 Palmela 10:20
    Um quadro um rectangulo e um circulo isto tinha algum geito?
  • Maria
    09 abr, 2024 Palmela 10:20
    Um quadro um rectangulo e um circulo isto tinha algum geito?
  • Maria Oliveira
    08 abr, 2024 Lisboa 21:45
    Esta discussão não tem sentido. O Governo de Portugal pode usar a imagem que quiser. A República Portuguesa, não. Ou seja o logótipo de Costa pode conter a menção Governo de Portugal mas não República Portuguesa. Esta terá de ser sempre identificada pelos seus símbolos, conforme art. 11.º da CRP.

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