Futebol internacional

João Dias viveu o mais recente caso de racismo que abalou o futebol espanhol: "Saímos de campo todos juntos, decidimos que não íamos jogar"

19 abr, 2024 - 15:00 • Inês Braga Sampaio

Central português do Rayo Majadahonda jogou com Nuno Mendes e Gonçalo Inácio no Sporting e foi bicampeão sub-23 no Estoril, mas decidiu rumar à terceira divisão espanhola em busca de novas oportunidades. Acabado de chegar, foi testemunha de um caso de racismo contra Cheikh Sarr, um caso com muita expressão em Espanha e que chegou até aos ouvidos de Vinícius Júnior.

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João Dias assistiu a caso de racismo no futebol espanhol. "Há que cortar as pessoas que têm esses comportamentos"
João Dias assistiu a caso de racismo no futebol espanhol. "Há que cortar as pessoas que têm esses comportamentos"

João Dias estava lá quando Cheikh Sarr, guarda-redes do Rayo Majadahonda, da terceira divisão espanhola, disse "basta" e saltou para a bancada para confrontar um adepto do Sestao River que lhe dirigia insultos racistas e foi expulso. Estava lá, apoiou o companheiro, na decisão da equipa de não voltar ao jogo, e apela: "Há que cortar do futebol as pessoas que têm esse tipo de comportamentos."

Aconteceu a 30 de março. Em entrevista à Renascença, João Dias recorda que, "no decorrer do jogo, já se ouvia da bancada insultos" racistas a Cheikh Sarr, algo que "não devia acontecer em lado nenhum do mundo". Por isso, embora admita que a reação do guarda-redes não foi a melhor, o central português entende que lhe tenha "saltado a tampa".

Após a expulsão de Sarr, a equipa toda do Rayo decidiu que não voltaria ao jogo: "Mostrámos que estávamos com ele e a equipa unida que somos."

No final, sofreram todos: Cheikh Sarr, castigado com dois jogos de suspensão, por "atitude antidesportiva"; o clube de Madrid, multado em três mil euros e punido com derrota de 3-0 na secretaria; e o Sestao River, multado em seis mil euros e sentenciado a disputar dois jogos à porta fechada. João Dias, que destaca o apoio de Vinícius Júnior, do Real Madrid, rosto da luta contra o racismo no futebol, lamenta que quem sofre as consequências seja "sempre o lado que supostamente sai afetado da situação".

Nesta entrevista a Bola Branca, o português, de 22 anos, lembra também os tempos na formação do Sporting, em que jogou com estrelas como Nuno Mendes e Gonçalo Inácio, e do bicampeonato de sub-23 pelo Estoril, além do novo passo para a carreira e do que espera que o futuro lhe traga.

Como tem sido a tua experiência no Rayo Majadahonda?
Tem sido uma experiência muito boa, porque a verdade é que eu venho para Espanha para jogar numa categoria abaixo daquela em que estou agora, e apesar de agora as coisas em termos classificação não estarem a correr como eu queria e como o clube queria, a verdade é que tem sido uma época que, não sendo muito, muito positiva pelo que está a acontecer agora, acaba por ser positiva individualmente.

Em Portugal, não chegaste a estrear-te no futebol sénior, além dos sub-23. Como é que chegaste aqui?
Em Portugal apenas joguei sub-23 e a verdade é que vim para Espanha porque em Portugal as coisas não me estavam a aparecer, não estava a ter a oportunidade que eu queria e que achava que já merecia e acabei por arriscar vir para outro país, que eu considero que futebolisticamente está um patamar acima do nosso e acabo por arriscar e a verdade é que as coisas até agora não têm corrido mal.

Chegaste a Espanha e trocaste de clube a meio da época, do Manchego para o Rayo. Por que é que decidiste mudar?
Simplesmente porque vim para um clube que está uma categoria acima e por isso decidi mudar. Quando tive a proposta de vir para aqui, não hesitei e vim, porque achava que era o melhor para mim.

Ainda por cima, estás praticamente em Madrid, nos subúrbios. Tem sido bom?
Eu vivia numa cidade onde se vive bem, mas que é um bocado longe de tudo, não tem muito que fazer. Madrid é outra coisa. É uma cidade muito maior, com nível de vida muito mais alto.

O queijo em Manchego é que deve ser bom, no entanto...
[risos] É muito bom, é verdade, mas aqui também há queijo manchego para comprar.

Falaste do nível competitivo, que em Espanha é alto. Numa terceira divisão, também sentes isso?
Aqui o nível é de Primeira REF, que é o terceiro nível em Espanha, é bastante alto. Tem clubes grandes, como o Depor, o Málaga, e tem jogadores que já jogaram a um nível muito alto e outros jogadores de nível alto. É um nível já bastante interessante.

Sentes, então, que estás a crescer, mesmo tendo saído de Portugal e estando nesta Primeira REF?
Sinto que estou a desenvolver-me a nível pessoal, porque tive de vir para um país diferente, apesar de não ser dos países mais diferentes de Portugal, porque aqui a vida acaba por ser muito parecida com a que passa em Portugal, o idioma não é muito diferente, mas apesar de tudo tive de me adaptar a um idioma novo, a uma vida nova. Estou a crescer a nível pessoal e a nível futebolístico também, porque considero que aqui estou a jogar a um patamar mais alto do que se tivesse ficado em Portugal. Por isso, acho que foi a decisão correta para mim.

João Dias: "Sinto-me um afortunado por ter jogado num clube tão grande como o Sporting"
João Dias: "Sinto-me um afortunado por ter jogado num clube tão grande como o Sporting"

Aproveitando a tua deixa, estiveste naquela grande equipa de sub-23 do Estoril, nas duas grandes épocas em que foram campeões. Como é que foi jogar e ganhar na Liga Revelação?
Foi muito bom. A Liga Revelação foi uma das grandes ideias da Federação Portuguesa de Futebol. É uma liga bastante boa, para jovens é incrível poder jogar esse campeonato, porque as condições do campeonato são boas, tem grandes equipas e é muito bom. Poder ganhar é melhor ainda. Jogámos para isso, para ganhar, e o Estoril não é um clube grande, não está acostumada a ganhar e conseguir ganhar em dois anos tudo o que havia para ganhar foi incrível.

Isso também é uma experiência, jogar numa equipa que entra em todos os jogos para ganhar e para ganhar títulos...
Claro, porque a verdade é que quando fui para o Estoril, não fazia ideia de que as coisas iam sair assim tão bem, porque, como eu já disse, o Estoril não é um Benfica, não é um Sporting, não é um Braga, neste momento, em que podes dizer, “OK, vou para lá e vamos jogar para ganhar um campeonato”. Mas a verdade é que desde o primeiro ano e desde os primeiros jogos, sentíamos que tínhamos equipa para ganhar a qualquer um e foi incrível.

Estamos a ir para trás no tempo, neste momento. Ou seja, podemos passar pelo Vitória de Guimarães sub-19, em que também estiveste. Partilhaste balneário com jogadores de seleção jovem, que têm estado em destaque, como o Tomás Händel e o André Almeida. O Vitória não é um dos três grandes, mas pode dizer-se que está num segundo estrato. Como é que foi para ti essa experiência?
Foi uma experiência também muito boa, porque a verdade é que também não tendo saído de Portugal, eu sou de Lisboa e ir viver para Guimarães com 16, 17 anos, às vezes não é fácil, porque estamos a sair da nossa zona de conforto. Jogar no Vitória é incrível. Estamos a falar de uma cidade que vive o futebol a 100%, em Guimarães todos são do Vitória. E como tu disseste, partilhar o balneário com jogadores que já sabia que eram diferenciados e que neste momento jogam em níveis muito altos é uma experiência incrível.

Sentes que essa experiência em Guimarães - teres viajado do Centro para o Norte do país - te preparou para esta mudança ainda mais radical?
Sim, eu considero que sim. Para já, considero que podemos aprender com todas as situações da nossa vida e evoluímos com todas elas. E eu acho que, com 17 anos, isso ter-me acontecido dá-me agora outro arcaboiço para poder aguentar coisas que às vezes não são fáceis de aguentar, o estar sozinho e tudo isso. Nessa altura, se calhar, foi mais difícil do que agora, também porque agora tenho mais maturidade e sou mais velho. Mas aprendi algumas coisas dessa altura para agora. Sinto que, graças a essa experiência, agora consigo estar aqui melhor do que se calhar estive nessa altura.

Dando mais um passo atrás na cronologia da tua carreira, também estiveste na formação do Sporting. Estiveste com jogadores de seleção nacional, como Gonçalo Inácio e Nuno Mendes, mas também com jogadores como Joelson Fernandes, Eduardo Quaresma e Tiago Gouveia, que agora está no Benfica. Lembras-te bem deles? E de que é que te lembras dessa equipa?
Lembro-me de todos. Jogar no Sporting é jogar no Sporting, é jogar num grande de Portugal e, mais do que isso, num grande da Europa. A nível de formação, então, dos maiores clubes do mundo. Aí, tens tudo e jogas com a elite do futebol português e internacional. É uma sensação incrível, ainda para mais quando és miúdo e podes desfrutar de coisas que muito pouca gente pode desfrutar. Porque a verdade é que jogar num clube desses dá-te coisas que muito pouca gente pode viver. Sinto-me um afortunado, também, por ter jogado num clube tão grande como o Sporting.

Que valências e aprendizagem te deu jogar no Sporting, que te tenham preparado para a tua carreira?
No Sporting, tal como no Vitória, que é um clube que na formação também já te dá tudo, e no Estoril – por sorte tive a felicidade de poder jogar em clubes, mesmo o Alverca, que nos dão tudo a nível futebolístico e a nível pessoal; no Sporting mais, claro, porque é um clube grande – aprendes tudo, aprendes a cuidar-te, porque se calhar pela primeira vez tens um nutricionista, tens um preparador físico, tens fisios para tudo. Aprendes um bocado isso, que tens de cuidar e que tu és futebolista, mas também és um desportista de alta competição e há coisas fora de campo com que tens de ter cuidado. Considero que isso é muito importante, também, hoje, para a minha carreira.

Desses jogadores de que falámos, houve algum de quem, no primeiro momento, tenhas dito, "este vai longe"?
Sim. Tiago Gouveia. Para mim, diferenciava-se muito e sentia-se que ia chegar, não digo facilmente, mas que tinha características e condições para chegar muito longe.

Houve outro cujo trajeto te tenha surpreendido, positiva ou negativamente?
O que mais me surpreendeu é o Nuno Mendes, porque tem uma evolução incrível. De ser iniciado e juvenil para agora, é absurdo. Fisicamente, acho que deu passos muito, muito grandes e depois, tecnicamente, já o tinha e continua a ter. Neste momento, considero-o “top-3” da sua posição do mundo.

Ou seja, o Nuno Mendes que tu conheceste não é bem o Nuno Mendes que vemos agora?
Exato, acho que é uma evolução incrível. Surpreende-me e fico feliz por ele.

Uma das experiências mais marcantes deste teu ainda curto percurso no Rayo Majadahonda foi o jogo com o Sestao River, em que o vosso guarda-redes, Cheikh Sarr, saiu a meio do jogo, por causa de um episódio de racismo, e a equipa acompanhou-o. Tu tens um ponto de vista particular: além de seres relativamente novo na equipa, tinhas entrado em campo 11 minutos antes. Como é que foi para ti viver esse episódio?
A verdade é foi tudo muito estranho, até eu estava um bocado incrédulo como o que se estava a passar. No decorrer do jogo, já se ouvia da bancada insultos ao nosso guarda-redes, pela cor de pele, o que eu acho que é uma coisa que não devia acontecer em lado nenhum do mundo. Mas a verdade é que estava a acontecer e chega a uma altura em que eu percebo perfeitamente a reação do Cheikh. Saltou-lhe a tampa e teve aquela reação, que se calhar não é a melhor, mas que eu percebo perfeitamente. A partir daí, a equipa mostrou-se unida e esteve sempre com ele e decidimos que não íamos jogar. E assim foi. Saímos de campo todos juntos e mostrámos que estávamos com ele e a equipa unida que somos, em termos de grupo.

Como é que foi, depois, dentro do balneário? Como é que estava o Cheikh?
O Cheikh estava um bocado afetado, como é normal. Estava um bocado cabisbaixo com o que tinha passado, não estava contente, estava triste mesmo. Mas dentro do balneário sempre mostrámos que estávamos com ele e que íamos assumir as consequências que tínhamos de assumir, porque sabíamos que aquilo que estávamos a fazer iria ter consequências, esperaríamos nós, positivas. Acho que acabou por ter, porque aqui em Espanha teve uma projeção muito grande e foi muito falado. E é um tema que está a ser bastante falado em Espanha, por causa do Vinícius, que tem dado muita voz a esse tema. Nós sabíamos que também íamos ter consequências negativas, como tivemos, perdemos três pontos. Perdemos o jogo e perdemos mais três pontos. Mas sabíamos o que estávamos a fazer e estávamos ali a demonstrar o nosso apoio ao Cheikh e à causa, que é uma causa importante.

Deram o apoio necessário ao companheiro, mas como é que vocês, também, lidam, quando um companheiro é vítima de um episódio de racismo?
Não é fácil, porque é nosso companheiro e é nosso amigo. E afinal, não gostas de ver um amigo ser insultado, ser maltratado, muito mais por uma estupidez, que é a cor da pele dele. E não é uma situação fácil. Mas também não é fácil para nós e para mim, pessoalmente, porque eu nunca o tinha vivido. Então, não sabes bem como tens de reagir eu e o que tens de fazer, por isso também não é fácil.

Então, na formação não chegaste a ver nenhum caso semelhante?
Não. Felizmente, não.

Ainda bem, no fundo. No futebol, e vemos isso como o Vinícius Jr., parece que quem paga mais por estas questões acaba por ser quem recebe do que quem tem estas atitudes. Como é que se pode combater estes casos e mudar esta mentalidade de que acaba por ser a vítima a pagar mais?
Acho que aí há que ser um bocado radical. Acho que há que cortar as pessoas que têm esse tipo de comportamentos do futebol e se se tiver de proibir essas pessoas de entrar num estádio do futebol, há que proibi-las. Os clubes têm de arranjar forma de perceber o tipo de pessoas que colocam dentro dos seus estádios, porque, afinal, os estádios são seus e só entra lá quem o clube quer. E o clube tem de tentar arranjar forma de evitar que essas pessoas entrem no futebol, porque isto não devia acontecer. E é verdade o que tu dizes, quem sofre as consequências é sempre o lado que supostamente sai afetado da situação e isso não devia acontecer.

Espanha foi "a decisão correta" para João Dias. "Estou a jogar a um patamar mais alto que em Portugal"
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De volta a ti: já disseste que estás a gostar da experiência no Rayo Majadahonda. Desde aqui, que perspetivas de futuro vês para ti, seja a curto ou médio prazo?
Considero-me uma pessoa realista e centrada em mim. Acho que eu estou a fazer as coisas bem e sei que ainda posso evoluir muito. Quero continuar a trabalhar, manter-me focado no meu processo de desenvolvimento e o meu futuro é, passo a passo, poder chegar o mais longe possível aqui em Espanha ou noutro país.

Sentes-te, para já, plenamente integrado no clube e em Espanha?
Aí nunca houve problema. Acho que sou uma pessoa simples e aqui, tanto aqui como no meu primeiro clube, receberam-me muito bem, integraram-me muito bem, e tive a sorte de ter companheiros incríveis a nível pessoal e a nível futebolístico, que me ajudaram sempre fora e dentro de campo.

De todos os clubes por que passaste, qual é a grande lição que levaste do futebol, seja para o futebol ou para a própria vida?
Do futebol, a lição que tiro cada vez mais de tudo é que só podemos estar centrados em nós mesmos e naquilo que nós conseguimos controlar. Porque no futebol há muitas coisas que nós não conseguimos controlar, se o treinador nos mete ou não, nós não conseguimos controlar isso. Então, eu acho que o melhor que nós podemos fazer é estar centrados em nós e na equipa e trabalhar o máximo possível para depois conseguimos aproveitar todas as oportunidades. É para a vida é um bocado isso, também. Quando tu trabalhas, a sorte acompanha-te e acabas por conseguir um bocado aquilo que queres. Agora, tens de trabalhar e não desistir, isto no futebol e na vida.

Olhemos para o futuro. A nível de evolução, o que é que esperas do João, imaginemos, daqui a cinco anos?
Eu quero que o João daqui a cinco anos continue a desfrutar do futebol e esteja num nível mais alto do que está agora. Não sei onde é que o futebol me vai levar, porque isso ninguém o sabe. Não sei onde é que vou estar daqui cinco anos, mas sei que vou trabalhar para estar a um nível elevado. Isso aí eu tenho a certeza. Se vou conseguir ou não, não sei, mas vou dar tudo de mim e espero que daqui a cinco anos consiga olhar para trás e dizer, “OK, passei por ali, estive onde tive de estar e agora estou num patamar onde trabalhei para estar e mereço estar”, porque será um patamar mais alto do que estou agora.

Qual é a tua grande referência na tua posição?
Atualmente ou…?

As duas coisas.
Atualmente, por ser português… Aliás, posso dizer duas?

Claro.
Atualmente, o Pepe, porque acho que é uma coisa incrível, com a idade que tem, conseguir jogar ao nível a que joga. E o Rúben Dias, porque também joga ao nível a que joga e é um bocado mais novo. Mas acho que são duas pessoas que demonstram que o trabalho, o cuidares-te podem levar-te a patamares muito altos.

E com quem é que achas que é mais parecido?
Isso aí, acho que com nenhum. Normalmente, ligo-me mais à parte emocional, à parte do trabalho. Em campo, não me considero assim muito parecido com nenhum dos dois.

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