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Treinador assina com clube que não paga salários há meses. Porquê?

05 jan, 2024 - 07:30 • Eduardo Soares da Silva

As dificuldades do Boavista abriram a porta da I Liga ao jovem treinador Ricardo Paiva. Com ordenados em atraso e uma proibição de contratar jogadores em janeiro, a montra da I Liga surge com riscos associados para quem aceita sentar-se no banco de suplentes.

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Quando Sandro Mendes foi convidado para ser o treinador principal do Vitória de Setúbal em janeiro de 2019, o primeiro instinto foi responder que não.

Há muitos anos que Sandro não é um desconhecido em Setúbal. Enquanto jogador, fez mais de 300 jogos pelo clube e esteve nas conquistas históricas da Taça de Portugal e da Taça da Liga.

Em 2019, acumulava funções de “team manager” e diretor desportivo. Na verdade, fez um pouco de tudo no Bonfim desde que terminou a carreira nos relvados: treinou quase todos os escalões, dos iniciados aos juniores, e até coordenou a formação. Por isso, a proposta para treinar a equipa principal poderia parecer uma oportunidade de sonho para um treinador em início de carreira, mas o clube não vivia um bom momento.

Para além das dificuldades de entrar a meio da época numa equipa na luta pela manutenção, existiam ordenados em atraso. E isso já não era um segredo guardado pelo plantel.

Decidiu “ignorar a razão” e aceitar o desafio. O amor à camisola e o convívio prévio com o plantel davam-lhe esperança de que era possível conseguir a manutenção. E, acima de tudo, aproveitar a primeira oportunidade enquanto jovem treinador na I Liga.

“Havia um grande espírito de missão. A equipa nem estava assim tão mal classificada, mas as dificuldades eram tremendas. Fiz quase toda a vida no Vitória e aceitei um pouco por amor ao clube”, recorda, à Renascença.

Em vários sentidos, a oportunidade que bateu à porta de Sandro Mendes é semelhante à que Ricardo Paiva vive hoje no Boavista. Ambos estavam há várias épocas nos clubes e tinham passado pela formação antes de surgir o convite, numa situação difícil, a meio da época.

“Se me pergunta se achava que seria desta forma que as coisas iriam acontecer? Estaria a mentir se dissesse que sim”. Ricardo Paiva, de 43 anos, apresentou-se assim como novo treinador do Boavista, um clube que está proibido de contratar jogadores, teve vários ordenados em atraso, uma rescisão de contrato unilateral e até viveu greves que obrigaram ao cancelamento de treinos.

Paiva está há sete anos no Bessa. Conhece os cantos à casa. Ainda antes de chegar ao clube, fez parte da equipa técnica de Sérgio Conceição no Olhanense, Académica, Braga e Vitória de Guimarães. Será precisamente frente ao Porto que se vai estrear frente aos grandes, na noite desta sexta-feira, no dérbi da cidade.

Foi o escolhido do presidente Vítor Murta para suceder a Petit: “Foi a nossa única solução, era ele que queríamos”. Em conferência de imprensa no Bessa, lado a lado, o dirigente desejou sucesso ao treinador e que a ligação – por agora acordada até ao fim da época – se prolongue por vários anos.

A época começou em estado de graça ainda com Petit no banco. Uma vitória contra o campeão Benfica, na primeira jornada, deu o mote para uma liderança improvável à quinta ronda, com quatro vitórias e um empate.

A equipa rapidamente caiu de rendimento. E em queda livre. Não voltou a vencer para o campeonato até hoje. É um jejum de triunfos que se prolonga há três meses e meio.

O Boavista continua proibido de contratar jogadores pela FIFA, situação que já impediu o clube de reforçar o plantel em janeiro do ano passado e também no verão. Os ordenados estão, à data, em dia até novembro, segundo confirmou a Liga de Clubes, mas estiveram várias vezes em atraso ao longo dos primeiros meses da época.

“Só 18 treinadores estão na I Liga”

O cenário não era tão grave quando Sandro Mendes se estreou como treinador do Vitória. "Não era das piores épocas, mas os ordenados não estavam em dia", recorda. Muitas dúvidas pairavam na cabeça do treinador.

“Estava ciente do risco, que era grande. Ninguém ia morrer se descêssemos, mas ficaria ligado a isso”, pensou Sandro.

Vítor Manuel viveu “várias situações semelhantes” – acha até que antigamente eram mais frequentes -, e não concorda com o risco de sair "queimado".

Tem 71 anos e é um dos nomes históricos da I Liga, com mais de 500 jogos orientados no primeiro escalão. Treinou, entre outros, Académica, Braga, Penafiel, União de Leiria e Leça. Acha que o risco, nestas situações, é quase nulo.

“Não tem nada a perder. Se fizer um bom trabalho, é muito mais valorizado, ainda se reconhece mais valor”, atira.

Para além das ligações emocionais, Vítor Manuel destaca o quão aliciante é a oportunidade de treinar na I Liga. Há milhares de treinadores em Portugal, da formação às equipas principais. Uns profissionais, a maioria amadores. No entanto, a lista dos que treinam na I Liga é restrita e, por isso, a concorrência é feroz e cada lugar é muito concorrido.

“O mercado está cada vez mais difícil, só 18 treinadores é que podem estar na I Liga. E se os 18 melhores treinadores do mundo estivessem cá, dois iriam descer na mesma”, diz.

É por isso que acredita que, apesar do prejuízo pessoal e financeiro, “é melhor estar na I Liga, no mercado, do que não estar, mesmo que não receba”.

Sandro Mendes passou alguns anos a aprender as entranhas da profissão na formação do Vitória. Sentia-se preparado para dar o salto e acreditou que, quando recebeu o convite para substituir Lito Vidigal, "poderia ser o seu momento" de afirmação como treinador de I Liga.

"Já tinha começado pela formação e via uma oportunidade muito boa de estar na I Liga. Sentia orgulho em achar que era capaz e as coisas correram bem”, recorda.

Como motivar um plantel que não recebe ao fim do mês?

Vítor Manuel chegou a ter seis meses de vencimento em atraso. Prefere não revelar o clube no qual viveu a situação, mas garante que só aceitava o ordenado depois dos jogadores.

A ética e a moral guiam o discurso do histórico treinador, que, por isso, não consegue esconder indignação com as declarações que ouviu do presidente do Boavista.

Lado a lado com o novo treinador, Vítor Murta afirmou que “dois meses de salário em atraso não matam ninguém”. Mais tarde, justificou que a expressão foi utilizada num contexto específico, respondendo a uma questão sobre “reanimar o Boavista”. E o “Boavista não está morto”, segundo Murta.

Mas a justificação não convence Vítor Manuel: “Estamos a falar de clubes de menor dimensão e há jogadores que não ganham muito. Por amor de deus, acho que é uma falta de respeito. Os jogadores têm compromissos”.

“Acho que uma frase destas não fica bem”, atira.

O atraso de dois ordenados pode não matar, mas segundo Vítor Manuel, pode ter um profundo impacto nos jogadores, nas suas vidas e no seu rendimento dentro de campo.

Ninguém está preocupado se os jogadores têm renda da casa, ou uma prestação do carro. Querem a bola na rede, mas por trás está sempre um homem. E quando não recebes o salário, tens mais dificuldade em desempenhar a tua função e ter um bom rendimento”, explica o também ex-jogador.

Neste tipo de situações, um treinador não é só um treinador. “É tesoureiro, psicólogo, roupeiro e até tratador de relva”, acredita o experiente treinador. “Temos de fazer de tudo para ajudar na questão emocional dos jogadores”, acrescenta.

Com a experiência de mais de duas décadas de carreira, Vítor Manuel duvida do discurso, algumas vezes repetido, de que é possível desligar os jogadores dos problemas salariais.

“Quando sais do treino, vais para casa e tens problemas para resolver, a família a perguntar se já recebeste e no dia seguinte vens com isso para o treino. Os treinadores podem tentar, mas quer queiramos, quer não, o jogador é afetado”, garante.

Sandro sublinha que é possível ter sucesso apesar das dificuldades financeiras. E é um exemplo disso. Conseguiu salvar o Vitória da despromoção à segunda divisão, mas recorda-se de outro episódio mais grave.

Enquanto jogador, foi capitão da equipa do Vitória que venceu o Benfica na final da Taça de Portugal, em 2005, com cinco meses de vencimentos em atraso.

Uma equipa com ordenados em atraso “arrasta problemas” e “quem trabalha, merece sempre receber o seu ordenado, como é óbvio”, mas Sandro e Vítor concordam que a chave do sucesso em situações destas está em manter um ambiente positivo e de união dentro do balneário: “É fundamental manter o espírito de missão, um por todos e todos por um”, diz Vítor.

Desfecho dramático no Bonfim. Qual no Bessa?

Sandro cumpriu o objetivo e, apesar de todas as dificuldades, manteve o Vitória na I Liga, o que não o livrou de um despedimento no início da temporada seguinte. Saiu com a sensação de missão cumprida, mas também de alguma injustiça pela decisão da direção.

Sucederam-lhe três treinadores numa época atribulada, que terminou novamente com a manutenção dentro de campo, mas com um desfecho negativo para os sadinos.

O clube foi castigado pela Liga com uma despromoção direta à terceira divisão devido aos problemas financeiros. Até hoje, não se reergueu. Disputa o Campeonato de Portugal, o quarto escalão.

Passaram-se quatro anos e, puxando a fita atrás, Sandro não tem dúvidas: o risco valeu a pena. “Tive a sensação de dever cumprido, nunca estivemos em lugar de descida”.

Sandro não voltou a treinar na primeira divisão, mas foi a oportunidade no Vitória que deu o pontapé de saída na carreira de treinador de equipas principais.

Entretanto passou pelo Amora, da Liga 3, na temporada 2021/22. Está atualmente à espera que o telefone toque, depois de uma curta passagem pelo Pêro Pinheiro, também da terceira divisão, onde “não cumpriram com o que lhe prometeram”.

“Acho que tenho valor para merecer outra oportunidade [na I Liga], mas ainda não foi possível”, conclui. No Bessa, só o tempo dirá qual o desfecho da história de Ricardo Paiva e do Boavista.

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