Família: um bem social

14 mai, 2024 - 07:24 • Pedro Vaz Patto

Se algo de comum a esses contributos diversos pode ser identificado será o da consonância com a doutrina da Igreja Católica sobre a família. O contributo de D. Manuel Clemente resume o magistério do Papa Francisco sobre essa temática.

A+ / A-

Ao escrever o meu contributo para o livro "Identidade e Família", nunca imaginei a polémica política que este livro viria a suscitar. Nem eu, nem nenhum dos restantes coautores. Também nunca imaginei que essa polémica dele fizesse um sucesso de vendas, pouco habitual neste tipo de livros.

Li muitas críticas vindas de quem nem sequer o leu, leu apenas alguns dos contributos ou apenas excertos retirados do seu contexto. Se o tivessem lido na íntegra, certamente não o definiriam como “manifesto da direita mais conservadora”. Na verdade, os contributos que recolhe são muito variados, alguns são testemunhos pessoais ou versam temas que nada têm de ideologicamente controverso. Nele se refletem várias sensibilidades. Nele não descortinei algo de ofensivo para quem tenha ideias diferentes, ao contrário do que sucedeu com muitas das críticas de que foi alvo (o epíteto de “cavernícola” é apenas um dos que recaiu sobre os coautores, certamente o mais caricato…).

Se algo de comum a esses contributos diversos pode ser identificado será o da consonância com a doutrina da Igreja Católica sobre a família. O contributo de D. Manuel Clemente resume o magistério do Papa Francisco sobre essa temática.

É verdade que alguns aspetos dessa doutrina contrastam com a mentalidade hoje corrente. Seria de esperar, por isso, que alguma polémica suscitassem várias das ideias expostas no livro. Mas o que verdadeiramente me surpreendeu foi a intensidade de críticas que pareciam recusar sequer discutir certos temas, que ainda não há muito tempo eram objeto de debates encarados com naturalidade. Afirmar hoje o que durante muitos anos foi aceite e mais recentemente tem sido discutido, parece agora uma heresia liminarmente condenada, quase como se fosse tema proibido.

Para quem não tenha lido o livro, vou agora resumir o que nele afirmei, para que possa julgar se se trata de algo de tão escandaloso assim…

Quis salientar um princípio fundamental de que deve partir qualquer política de apoio à família; o de que a família é um bem social. Podermos encarar a família na perspetiva do seu relevo privado, como um bem para a realização pessoal de cada um dos seus membros. Mas devemos também encará-la na perspetiva do bem que representa para a sociedade no seu todo. Podemos dizer, por isso, que a saúde e coesão de uma sociedade dependem da saúde e coesão da família

Esta ideia ajuda-nos a compreender o essencial do que está em jogo na discussão sobre a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Há que verificar se são os mesmos o relevo e a função social de uma união entre um homem e uma mulher, por um lado, e o relevo e a função social de uma união entre pessoas do mesmo sexo. Trata-se do reconhecimento social e jurídico da primeira e mais básica das instituições sociais, da «célula básica da sociedade», como o faz a Declaração Universal do Direitos Humanos de 1948.

A família é a primeira e mais básica das instituições sociais, antes de mais porque assegura a renovação das gerações. É da família, da sua saúde e coesão, que dependerá a saída para a mais grave crise social com que se deparam hoje as sociedades europeias. Refiro-me à crise demográfica, uma crise sem paralelo na História, porque normalmente

as crises demográficas decorriam de guerras ou períodos de graves carência, que hoje não se verificam.

Mas não é só a função biológica de geração de filhos que faz com que a família cumpra a primeira e mais básica das funções sociais. Cumpre essa função porque representa o contexto mais adequado e harmonioso para a educação das novas gerações. Na família respeita-se a dignidade da pessoa humana, esta é encarada como ser único e irrepetível. Na família a pessoa é acolhida e amada pelo que é, não pelo que faz ou pelo que produz. A família é a primeira e mais básica escola de socialidade. O campo privilegiado da gratuidade é o da família, onde espontaneamente se dá sem esperar nada em troca e com a maior das alegrias.

A família assente na riqueza da diferença e complementaridade entre as dimensões masculina e feminina, que só em conjunto compõem a riqueza integral do humano. Esta “unidade na diversidade” (a unidade a partir da mais básica e fundamental das diferenças) marca a família e, a partir dela e através da sua missão de educação das novas gerações, deve marcar toda a sociedade, que, toda ela, deve beneficiar da riqueza da diferença e complementaridade das dimensões masculina e feminina do humano.

Para superar a crise demográfica, há que favorecer a conciliação entre o trabalho e a vida familiar e há que contrariar a tendência crescente para a precariedade laboral: nesse contexto a decisão de ter filhos será permanentemente adiada. A política de habitação também não pode ser desligada de uma política de apoio à família. Confiar em absoluto no dinamismo do mercado não é solução, porque este sofre sempre de um limite: a sua “cegueira” em relação ao relevo social da finalidade dos contratos.

Não se vence a crise demográfica sem vencer a crise da família. A rejeição do casamento como doação total e compromisso definitivo não pode deixar de traduzir-se na rejeição da natalidade. Há, pois, que acreditar na família como um projeto duradouro. Só nesse contexto é razoável a decisão de ter filhos. Também nunca será salutar e coesa uma sociedade em que o divórcio deixa de ser a exceção e passa a ser a regra.

A crise demográfica só será vencida com a consciência de que a vida é sempre um dom e uma riqueza, que compensa sacrifícios e renúncias.

Estas ideias não serão consensuais. Mas é lamentável que não sejam sequer debatidas num espírito dialogante que para todos é sempre proveitoso.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

Destaques V+