José Miguel Sardica
Opinião de José Miguel Sardica
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​Camões envergonhado

12 jun, 2024 • Opinião de José Miguel Sardica


A militância wokista dos que pretendem “desconstruir” a pátria não pode deixar de ver no poeta um expoente da “negra” página dos descobrimentos portugueses.

Em 2021, o governo de António Costa aprovou a ideia de comemorar, em 2024, o 5.º centenário do nascimento de Luís Vaz de Camões, em ano coincidente com o do 50.ª aniversário do 25 de abril. O plano comemorativo deveria ter sido aprovado em 2022, mas nada se avançou, por inexistência de uma estrutura de missão que o preparasse. No final de 2023, a comissária designada para o efeito, Rita Marnoto, veio revelar o impasse. E só agora, já em 2024, se preparou o dito programa, cujo lançamento se fez anteontem, em Coimbra, no quadro das celebrações do 10 de junho deste ano. Antes tarde do que nunca; mas a procrastinação disto tudo deixaria o próprio Camões envergonhado. A maior figura da literatura nacional até (se calhar ainda…) Fernando Pessoa, merecia maior desvelo. Veremos como dela cuidará o país até ao termo do programa comemorativo, agora adiado para 2026.

Não é por acaso que o 10 de junho é o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. Porque Portugal e a diáspora lusa pelo mundo tiveram em Camões um dos seus maiores cronistas, intérpretes e representantes. Lídimo escritor do classicismo renascentista, ele foi um dos grandes construtores da portugalidade como uma “comunidade imaginada”, vivida e projetada de um território euro-atlântico para as quatro partidas do mundo, através de uma gesta de reis, cavaleiros, nautas e heróis que, sob a sombra inspiradora da cruz de Cristo, conferiram ao país um desígnio - que é ainda aquele que hoje subjaz à celebração identitária do 10 de junho.

A sua obra-prima, «Os Lusíadas» (10 cantos, 1102 estrofes, 8816 versos) são uma epopeia literária só comparável à «Eneida» de Virgílio, ou à «Ilíada» e «Odisseia», de Homero. Mas Camões escreveu muito mais, criando um universo de referências inesgotável, sobre a pátria, a cultura, o valor e a moral, o amor e a natureza, os feitos que movem a História, a realidade mutante das coisas e a relação dos (grandes) homens com o divino e a mitologia, sempre à luz do cristianismo do seu tempo. Em Camões se plasma, e nele se pode descobrir, o Portugal quinhentista, na sua sociedade, costumes, dinâmicas e aspirações, fazendo do épico um analista tão sagaz, crítico e atual, quando o foram Vieira no século XVII, Bocage no século XVIII, Eça no século XIX ou Pessoa no século XX. Lembrar Camões é, portanto, um magno ato de cultura, uma dívida de patriotismo que, da esquerda à direita - foram os republicanos que popularizaram a comemoração camoniana e os salazaristas que o mitificaram por causa do império - deve mobilizar a democracia pluripartidária dos dias de hoje.

Infelizmente, parece não ser assim. Se as comemorações arrancaram com atraso e suscitam alguma resistência é porque, no fundo e para muitos, a evocação de Camões talvez envergonhe. A militância wokista dos que pretendem “desconstruir” a pátria não pode deixar de ver no poeta um expoente da “negra” página dos descobrimentos portugueses, na qual ele próprio participou, como colonizador eurocêntrico, supremacista branco (lembrem-se do escravo Jau), masculino tóxico (lembrem-se da Ilha dos Amores) e demais epítetos da moda.

A esquerda libertária envergonha-se de feitos que fizeram e projetaram o país no passado, preferindo cultuar políticas identitárias, e não a identidade portuguesa, assim antepondo micro minorias ofendidas com qualquer coisa desde ontem à tarde a uma enorme maioria chamada Portugal, realidade ôntica de milhões de indivíduos desde há centenas de anos. “Muda(ra)m-se os tempos, muda(ra)m-se as vontades”, sem dúvida; mas com essa mudança, em pouco estarão os anti camonianos a contribuir para resgatar o país a “uma austera, apagada e vil tristeza”.

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