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Reportagem Bola Branca

"Isto nunca mais acaba". Como os miúdos do Candoso sobreviveram à pior época da história da I Liga de futsal

16 mai, 2024 - 08:30 • Eduardo Soares da Silva

Jogadores, treinadores e dirigentes do Candoso carregaram o fardo de levar até ao fim uma época só com derrotas e com mais de 200 golos sofridos na primeira divisão de futsal. O que aconteceu e o que motiva uma equipa que sabe que vai entrar em campo para ser goleada?

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"Isto nunca mais acaba". Como o Candoso superou a pior época da história da I Liga de futsal
"Isto nunca mais acaba". Como o Candoso superou a pior época da história da I Liga de futsal

Ao fim de um minuto e meio de jogo, o Candoso já perdia por dois na receção ao Torreense para a 20.ª jornada do campeonato nacional de futsal. Para Kiko, o capitão da equipa que perdeu todos os jogos da época, é um filme de terror que se repete. Esta época são 22 derrotas e 241 golos sofridos, mais de dez por jogo. Golos marcados foram apenas 24.

“O bichinho está sempre na nossa cabeça. Entra o primeiro, o segundo, o terceiro e pensamos: vai começar. Depois, é muito difícil para mudar o chip”, assume.

Com apenas 21 anos, é dos mais velhos de um plantel composto quase exclusivamente por jogadores que, na época passada, alinhavam no futebol distrital pela equipa B. Kiko rapidamente percebeu que envergar a braçadeira nesta equipa o colocaria em situações em que nunca se tinha visto.

“Quando começou a perceber-se que sofríamos goleadas todos os jogos, era o capitão que ia falar no fim do jogo. O que é que era suposto dizer? Não sabia”, reconhece.

Mas há sempre quem tente remar contra a corrente de maus resultados. No balneário, antes do jogo, o treinador Óscar Rosas tenta motivar de alguma forma um grupo já despromovido à segunda divisão: “Estou convencido que é hoje que vamos chegar ao objetivo”.

A meta não é uma vitória retumbante, nem sequer um triunfo sofrido pela margem mínima. É apenas um empate. O Candoso, clube de uma pequena freguesia com pouco mais de mil habitantes em Guimarães, perdeu todos os jogos até à entrada para esta jornada. Goleada atrás de goleada, num cenário que se repete a cada fim-de-semana. Os minhotos não baixaram os braços, mas os objetivos foram mudando e ajustaram-se à realidade.

“Eu tenho fé, mas agora fica nas vossas mãos. Se inventarmos, será mais do mesmo”, alerta novamente o treinador, antes de anunciar o cinco inicial e dos jogadores subirem para a quadra.

Há ainda um último momento no pequeno balneário do Candoso antes do início do jogo. A equipa junta-se em roda e o capitão Kiko dá o mote para o grito de guerra: “Desistir?”, questiona. “Nunca”, gritam todos. “Lutar?”, volta a perguntar. “Sempre”, respondem. Batem todos palmas e saem do balneário. Ouve-se uma última voz vinda do fundo do balneário: “É hoje, malta”.

Mas não foi. A realidade sobrepôs-se novamente. Mais um passo em direção ao precipício. Depois dos dois golos a abrir, o Torrense – uma equipa que só conseguiu garantir a manutenção bem perto do fim da época – marcou mais sete. Uma vitória tranquila e incontestada por 9-0.

Já chega a um ponto em que não há motivação que pegue. É só chegar ao balneário e ver que o barco está a afundar, mas que não estou sozinho, eles estão comigo e vamos todos juntos”, explica o capitão.

"Estou convencido que é hoje". Como motivar uma equipa que perde todos os jogos?
"Estou convencido que é hoje". Como motivar uma equipa que perde todos os jogos?

O mais jovem do plantel é Rui Oliveira e o futsal de primeira liga não foi a única novidade deste ano. Tem 18 anos e é caloiro na licenciatura de marketing na Universidade do Minho. Esperava dificuldades, mas nunca um ciclo de humilhações a cada jornada.

“Sabia que ia ser difícil porque nenhum de nós tinha experiência neste patamar. Esperava maus resultados, mas nunca neste nível. Nunca pensei que iriam ser goleadas quase todos os jogos. Achei que ainda existia a possibilidade de lutarmos por algo em alguns jogos”, diz.

O choque de realidade custou: “A moral caiu quando começaram a ser goleadas todos os jogos”.

O sofrimento passa a ser psicológico. A vontade de não estar ali, naquele momento, é quase absoluta: “Chega a um ponto em que só olho para o relógio e o tempo nunca mais passada. É um desgaste físico e mental. Há momentos em que se pensa: mais vale acabar a época aqui. A bola vai ao centro e vai para a nossa baliza. São números absurdos. É óbvio que chega a um ponto em que ninguém quer estar ali. Por favor, se der para acabar o jogo mais cedo, que acabe”.

As lágrimas de Kiko

Os resultados pesados acumularam-se rapidamente. Primeiro, 9-0 na jornada inaugural contra o Fundão, 9-1 em Braga na segunda. O Benfica marcou 15 à quinta jornada e, duas jornadas depois, o Sporting fez 11 golos.

A maior derrota da época aconteceu em dezembro, contra os Leões de Porto Salvo, na décima jornada. Os 19 golos deixaram uma marca profunda, mesmo em quem já se começava a habituar às derrotas.

Cheguei a casa e o meu pai estava à minha espera. Disse-lhe: ‘É o que é’, e escorreram-me as lágrimas pela cara”, recorda Kiko, emocionado.

Não é só pela derrota, justifica, mas pela incapacidade de mudar o rumo da temporada: “O que custa é que estou aqui, dou o meu melhor e o resultado continua a ser aquele”.

“O que é preciso fazer mais? Não dá. Saímos de rastos e o resultado não muda. Marquei 33 golos no ano passado, fiz um nesta época. Um amigo perguntou-me onde é que anda o Kiko. Eu respondi-lhe que o Kiko é o mesmo, se calhar está é num patamar que não é o dele”, reconhece.

“Nem para o distrital dá”

Óscar Rosas, o treinador da equipa, tem 67 anos e estava praticamente reformado da modalidade quando o telefone tocou. Tinha experiência de I Liga, no Rio Ave e Pinheirense, e não há muitos treinadores a norte com o nível exigido para treinar no mais alto escalão.

Sabia das dificuldades, mas aceitou o convite. “Estes jogadores estavam todos no distrital, teriam de subir cinco divisões até este patamar. Eu sabia a dificuldade, mas eles não”, diz.

O Candoso teve um primeiro vislumbre daquilo que poderia ser o desfecho do ano ainda durante a pré-época. O clube organizou um torneio amigável e convidou o Sporting de Braga e a Academia Johnson, do distrital de Lisboa: “Escolhemos essa equipa para fazer ‘um bonito’ aqui em casa. Perdemos com o Braga, mas também perdemos com a equipa do distrital”.

A conclusão foi arrasadora: “Caímos na real, nem para o distrital dá”.

O argumento do treinador é validado pela época passada. A maioria destes jogadores, na altura na equipa B, não foram além do no oitavo lugar no interdistrital de Braga e Viana, uma competição com 11 equipas. Venceram 8 jogos, perderam 12. Marcaram 60 e sofreram 64.

O motivo do tombo

Mas, afinal, o que aconteceu? O Candoso esteve as últimas quatro épocas no meio da elite e chegou a ter internacionais no plantel. Como se justifica uma quebra tão acentuada?

Sérgio Abreu é o presidente há quase uma década e está ligado ao Candoso há 20 anos. Explica que, sem apoios municipais - porque Guimarães não apoia modalidades seniores -, o clube depende totalmente de patrocinadores para criar um orçamento que permita contratar jogadores e pagar ordenados.

As empresas locais têm sustentado o sonho do Candoso na I Liga. Mas algo mudou no último verão.

“Perdemos os investidores. Sabíamos que isto poderia acontecer um dia, mas não pensei que fosse ser tão forte. As pessoas que cá estavam deixaram pura e simplesmente de apoiar. Não quiserem mais”, confidencia.

O orçamento caiu a pique. Dos 250 mil euros para perto de 80 mil: “Já eramos um clube que ficava a metade dos outros. Este ano, devemos ter um orçamento 10 a 20 vezes menor do que os outros”.

Na prática, os 80 mil dão para pouco. Valem para fazer face às despesas de nove deslocações a um campeonato concentrado na capital, para a organização dos jogos em casa e ajudas de custo aos jogadores. “Não permite veleidades”, reconhece o presidente.

E sem a possibilidade de pagar ordenado aos jogadores, o plantel da época passada partiu para outros destinos. Restaram os jovens da formação.

Há outro fator que complicou (ainda mais) a tarefa do Candoso: o campeonato está cada vez mais profissional. O dirigente exemplifica: “Quando subimos há cinco anos, só o Benfica, Sporting e uma ou outra equipa é que eram profissionais. O resto eram estruturas amadoras. Hoje, o Torreense até fotógrafa tinha”.

O treinador Óscar acrescenta que “a única equipa que também não é profissional é o Belenenses, que desceu, mas com um orçamento muito superior ao nosso. Estou convencido que o menor ordenado do Torreense paga o nosso plantel todo”.

A equipa divide o tempo entre trabalho e os estudos. Sem receber para jogar, Kiko, a arrancar um mestrado em desporto na Universidade da Maia, acha que é a paixão pelo futsal que cola o plantel: “Sem maturidade, íamos embora”.

“Ninguém vive disto. Eu estudo, mas se eu próprio, às vezes, não tenho vontade de vir treinar, imagino os que trabalham oito horas e têm de vir para cá às 20h30 e sair às 23h00. No dia seguinte, levantam-se às 7h00 para irem trabalhar novamente”, destaca.

Sérgio Abreu assume que a descida de divisão “custa muito”, mas o “clube tem de continuar”. É-lhe impossível imaginar um cenário em que hipotecaria o futuro do Candoso: “Sem apoios, não podemos fazer muito mais”.

“Portugal é fértil em exemplos por aí fora, mas não podemos dar cabo do clube a endividar e colocar o clube em causa. Se não dá para 20, temos de fazer para 10 ou 15”, reflete.

O dirigente que levou o clube dos distritais à I Liga, acha até que foi a rápida ascensão em quatro anos que não permitiu criar bases necessárias para que o clube se cimentasse, a longo prazo, na I Liga: “Foi um sonho lindo, mas provavelmente a Liga Placard não é para o Candoso. Somos uma freguesia de mil pessoas, cheio de clubes de futsal à nossa volta”.

Um Peugeot na Fórmula 1

De regressa à quadra, Óscar Rosas conversa com a Renascença sentado no banco de suplentes. Não é o seu habitat natural. Durante o jogo, raramente se senta. A equipa perde, os jogos descambam quase sempre para goleadas, mas o treinador tenta puxar pelos jogadores.

Óscar destaca várias vezes a juventude da equipa. Via a inexperiência do grupo no deslumbramento dos jogadores: “Acham que estão a viver um sonho, e estão, porque jogam contra os monstros da modalidade”.

Os resultados nunca saíram do vermelho, mas Óscar viu, ainda assim, melhorias ao longo da temporada: “No primeiro jogo, perdemos por 9-0. Acho que sete foram de bola parada. Qualquer canto ou livre dava golo. Não estavam habituados e acho que, se nesse início de época, os nosso adversários não tivessem tirado o pé do acelerador, teriam sido mais”.

O treinador encontra algum conforto em saber que os jogadores “nunca andaram enganados”. O tempo foi toldando as expectativas de quem não quisesse acreditar no futuro anunciado.

“O nosso trabalho foi fazê-los perceber que iria ser sempre assim. Não há milagres e pior era dizer que iríamos melhorar e lutar para não descer. Fomos sempre realistas. Mesmo o objetivo de fazer um ponto era muito difícil, mas claro que eles têm de se agarrar a algo, mas sempre dissemos que era impossível salvar. Não é possível ir para a Fórmula 1 com um Peugeot”, compara.

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Kiko: "Chego à universidade e perguntam quantos foram… Por dentro, penso: ‘Olha-me este’. Não sabem a tristeza que é chegar ao balneário e ver as caras deles depois de levarmos 10"

Em retrospetiva, Kiko sente que o valor de mercado que tinha possa ter caído. O capitão já tinha integrado a equipa principal no ano passado. Ajudava a compor o banco em momentos de aperto e até já tinha feito alguns minutos na I Liga, apontada por muitos como a melhor do mundo. Mas na noite anterior ao arranque desta época, nem pregou olho.

“Não dormi, sabia que ia jogar na I Liga. No ano passado, tinha 80% de probabilidade de não jogar, mas nesse dia deitei-me na cama a saber que ia jogar, que ia dar na televisão e que ia ser capitão na I Liga”, recorda.

Sporting e Benfica são presenças habituais na “final four” da Liga dos Campeões e defrontar os melhores do mundo é um aliciante para qualquer jogador: “Contra o Sporting fui à moeda ao ar e tinha o meu ídolo à frente: o Merlim. Marquei o meu ídolo. Passei do sofá para jogar contra eles”.

“O Candoso deve estar orgulhoso porque aguentámos”

O fardo de ser a equipa que sofre goleadas em todos os jogos tem um impacto para lá das quatro paredes do pavilhão. Chega às vidas pessoais de cada um. É essa a perceção de Kiko: “Chego à universidade e perguntam quantos foram…”

“Por dentro, penso: ‘olha-me este’. Não sabem a tristeza que é chegar ao balneário e ver as caras deles depois de levarmos 10. Custa-me um bocado”, reconhece.

A equipa aguentou e levou a época até ao fim. Depois do Torrense, duas novas goleadas: 8-0 na visita ao Ferreira do Zêzere e 3-12 contra os Leões de Porto Salvo, em casa, na despedida da temporada. O Candoso igualou o pior registo da história da prova com os mesmos zero pontos que o FC Azeméis na época passada, mas sofreu mais e marcou menos.

Todos lamentam o desfecho, mas ninguém se mostra arrependido. O presidente foi até incentivado a desistir, face às dificuldades, mas não arredou pé: “Tive amigos que me disseram que estava a ser tolinho por continuar”.

“Era só pedir a demissão e teria feito algo histórico, do distrital à I Liga. ‘Sérgio, não sejas tolo e desiste’, diziam-me. Mas o que me move não é que me façam uma estátua lá fora, os holofotes ou o Canal 11. É a paixão pelo clube. Fiz de tudo aqui: fui motorista, treinador, fisioterapeuta, roupeiro. Sempre me orgulhou a união forte da freguesia em torno do clube. Desistir, nunca”, conclui.

Kiko diz que o clube “deve estar orgulhoso”. “Aguentámos”, destaca. É, talvez, a maior vitória deste jovem plantel.

“Fomos muito homens, não era qualquer um que aguentava este ano todo”, diz. O treinador concorda: “Eu não estou numa fase da carreira em que me evito queimar, estou quase reformado e vim para ajudar. Não me arrependo”.

Rui Oliveira é o mais novo de todos. É alto, tem olhos azuis e um cabelo longo à Beatle. É jovem e tem a carreira pela frente, mas reconhece que o Candoso abriu a porta a uma oportunidade única a todos eles: “Por outros caminhos, se calhar nenhum de nós estaria na I Liga, sinceramente”.

Por trás da bancada do pavilhão, destaca-se uma enorme tarja: “Vençam por nós”, lê-se. Esta época, isso não foi possível, mas as esperanças renovam-se daqui a uns meses, quando o Candoso voltar à competição, na segunda divisão.

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